A presença de Salvador da Rima na CPI dos Pancadões trouxe à tona uma discussão muito além das festas de rua. O depoimento do artista, conhecido por retratar a realidade das periferias em suas músicas, tornou-se símbolo de um debate que envolve liberdade de expressão, cultura popular e a forma como o poder público enxerga as manifestações urbanas. Quando um rapper é colocado no centro de uma investigação parlamentar, a sociedade precisa refletir se o objetivo é realmente entender as causas sociais por trás desses eventos ou se há um movimento de criminalização da arte e da voz das periferias.
Salvador da Rima sempre representou uma parte da juventude que se vê pouco ouvida nas esferas institucionais. Sua convocação para depor levantou o questionamento sobre até que ponto artistas estão sendo responsabilizados por contextos que vão além da música. A CPI, que deveria apurar problemas ligados à segurança e à organização de eventos, parece ter se transformado em palco de disputa ideológica, colocando sob suspeita uma expressão cultural legítima. O episódio reacende o debate sobre o tratamento desigual dado às manifestações artísticas de origem periférica em comparação com outras formas de entretenimento.
A cultura do pancadão, com toda sua complexidade, é um reflexo direto da realidade social das periferias. Criminalizar esse fenômeno é ignorar o fato de que ele surge da falta de espaços públicos, da ausência de políticas culturais e da desigualdade urbana. Quando Salvador da Rima é questionado em uma CPI, o que está em pauta não é apenas o som alto, mas o direito de existir culturalmente, de expressar vivências e de mostrar a realidade das quebradas. O que está sendo julgado, na prática, é o incômodo que uma cultura popular causa às estruturas tradicionais de poder.
O caso também levanta uma questão sobre a seletividade da repressão. Enquanto festas em regiões centrais são vistas como eventos culturais, as manifestações nas periferias são frequentemente tratadas como problemas de segurança. A CPI dos Pancadões, ao focar em figuras como Salvador da Rima, acaba reforçando uma narrativa de perseguição e estigmatização. Isso não significa defender o desrespeito à lei, mas pedir coerência e sensibilidade social na aplicação das normas. A arte que nasce da periferia é, muitas vezes, o único meio de visibilidade de uma parcela esquecida da população.
Salvador da Rima tem sido voz de uma geração que usa a música para denunciar desigualdades, falar sobre resistência e reafirmar identidade. Quando essa voz é levada a um ambiente de investigação, o risco é que o Estado confunda crítica social com afronta. O rapper, ao expressar a vivência de jovens periféricos, cumpre um papel social que vai muito além do entretenimento. Ele traduz em versos a luta cotidiana por respeito, segurança e dignidade, elementos que deveriam ser tratados como pautas políticas, não como ameaças.
O debate em torno da CPI dos Pancadões também evidencia a necessidade de um diálogo mais amplo entre poder público e cultura urbana. Criminalizar eventos e artistas não resolve os problemas estruturais das cidades. O que falta é política cultural consistente, que valorize o protagonismo das comunidades e promova alternativas seguras para a expressão popular. A presença de Salvador da Rima na comissão poderia ter sido uma oportunidade de escuta e aprendizado, mas acabou sendo marcada por um clima de tensão que espelha o distanciamento entre instituições e realidade social.
A liberdade artística é um dos pilares de qualquer democracia consolidada. Quando um artista é submetido a questionamentos que ultrapassam o campo do diálogo e adentram o terreno da intimidação, há risco real de retrocesso. O caso Salvador da Rima é emblemático porque demonstra que ainda há resistência em reconhecer a cultura de periferia como expressão legítima e valiosa. A tentativa de silenciar essa arte é, na verdade, uma tentativa de apagar parte da identidade brasileira.
Mais do que um episódio isolado, o caso Salvador da Rima representa um alerta. É preciso repensar como o Estado lida com as manifestações culturais populares e garantir que investigações não se tornem instrumentos de perseguição simbólica. A arte deve continuar sendo espaço de questionamento, liberdade e transformação. Quando um artista periférico precisa se justificar por cantar sua realidade, é sinal de que a sociedade ainda não aprendeu a ouvir todas as suas vozes.
Autor: Veronyre Grugg